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25 de abril de 2024

Nós Dois Sozinhos no Éter, de Olivie Blake, e o fenômeno dos romances entre pessoas quebradas


Olivie Blake, que na verdade se chama Alexene Farol Follmuth, é mais conhecida pela trilogia dark academia A Sociedade de Atlas. Em Nós Dois Sozinhos no Éter, Olivie retorna com uma proposta diferente: à princípio, se trata de um romance, mas o principal tema abordado é saúde mental. A autora, diagnosticada com Transtorno Bipolar, colocou muito de seus sentimentos e experiências no livro, como ela mesma diz nos agradecimentos.

Mas vamos à história. Em Nós Dois Sozinhos no Éter somos apresentados a Aldo e Regan. Ele é doutorando e professor universitário de Matemática, fechado e não se importa muito com o que pensam dele, o tipo low profile, e sua mente vive ocupada com cálculos e abelhas. Ela é formada em história da arte, trabalha como guia em um museu e tem uma personalidade caótica. Ele é ordem. Ela é caos. Eles se conhecem por acaso e ficam curiosos. Decidem matar a curiosidade tendo seis encontros para conversarem e decifrarem um ao outro. As conversas entre eles são inteligentes, o vínculo que eles estabelecem é de dentro para fora e um acaba se apaixonando pela mente do outro.

Eu tive alguns problemas com esse livro, muitos deles já tinham sido questões incômodas em A Sociedade de Atlas: a linguagem juvenil, os personagens caricatos e a imaturidade das relações. Aldo e Regan conversam tanto, tanto, tanto, e nunca falam sobre o que realmente importa. Me irrita o desejo de ter conversas profundas sem falar sobre sentimentos e intenções. Me irrita a romantização de relações problemáticas baseadas na ideia de que é emocionante ver pessoas se destruindo. Vi muitas comparações desse livro com Pessoas Normais e Cleópatra e Frankenstein e concordo totalmente porque, pra mim, esses três livros retratam pessoas imaturas e destrutivas em relacionamentos imaturos e destrutivos e perpetuam a ideia de que relacionamentos conturbados são mais emocionantes e dignos de serem retratados em livros e filmes. Como resultado, temos uma multidão de pessoas que se entediam com seus relacionamentos saudáveis e acham que uma vida sem emoções intensas não é uma vida legal. Inclusive, Regan deixa isso bem evidente quando diz: "normal é uma forma bacana de descrever algo entediante"

Ver beleza na decadência parece ser uma tendência que vem sendo ressuscitada. Quem lembra do Tumblr? Aquele rede social onde parecia que todo mundo era emocionalmente ferrado, drogado e/ou potencialmente suicida. Esse livro tem a perfeita vibe Tumblr. Inclusive, existe uma música chamada Tumblr Girls, do rapper G-Easy que diz: "Porque eu sou apaixonado por essas meninas do Tumblr / Com cinturas finas e envolvimento com drogas / Rostos bonitos amam status, ela age como se fosse a mais foda". Parece a trilha sonora perfeita para esse livro.

Quando penso em Nós Dois Sozinhos no Éter só consigo pensar na seguinte frase: seria lindo se não fosse trágico. Porque Aldo e Regan são pessoas muito fragilizadas e incapazes, ao menos nesse momento, de construírem uma relação sólida e saudável. Na verdade, Regan já tem um relacionamento, com um namorado de merda péssimo, mas ela também é uma pessoa péssima. E não por seu diagnóstico. Regan, assim como a autora, tem Transtorno Bipolar. O livro retrata sua relação com os medicamentos e mostra suas consultas psiquiátricas. Eu, como psicóloga, lido com pessoas com Transtorno Bipolar frequentemente. O Transtorno Bipolar é um transtorno de humor, que causa alterações de humor intensas que vão da depressão à mania. Na fase de mania, as pessoas se tornam impulsivas e, por vezes, inconsequentes. Mas não é isso que torna Regan uma pessoa difícil. Regan é egoísta, auto destrutiva e vive de mentiras e aparência, odeia a irmã porque a irmã não fracassou tanto quanto ela e parece sentir prazer quando as pessoas se dão mal, porque assim ela se sente menos pior consigo mesma.

Relações problemáticas precisam ser retratadas na ficção e eu não estou contestando isso. Assim como não contesto o fato de que pessoas com problemas emocionais podem se relacionar e, não intencionalmente, podem transferir seus problemas para o relacionamento. Isso é absolutamente normal. Mas qual seria a forma correta de fazer isso? Porque esse livro se vende como "uma história sobre amar por inteiro, mesmo estando aos pedaços" e eu não poderia discordar mais. Tem um momento no livro em que Aldo faz um discurso sobre Regan ser uma pessoa difícil. O discurso é super romântico, profundo, meloso e claramente tenta reforçar essa premissa de que eles se amam por completo. Só que faz sentido amar algo no outro que está claramente destruindo aquela pessoa e tudo o que ela toca? Numa relação madura e saudável, a gente não ama os problemas do outro, a gente identifica esses problemas e ajuda a pessoa a lidar com eles. Eu não amo a depressão de alguém, eu amo essa pessoa e ajudo ela a lidar com esse problema que faz mal à ela. Esse discurso de amar por inteiro é super imaturo. Perceber que a pessoa é problemática e difícil, que está claramente se destruindo, que não consegue construir uma relação que preste e amá-la por isso chega a ser bizarro. Na teoria, o discurso de "você não precisa ser consertada" é muito bonito, mas, na vida real, pessoas precisam de tratamento para questões específicas se quiserem viver uma vida de qualidade. Ignorar isso (ou pior: romantizar) pode criar um problema muito maior e, às vezes, irreversível. Afinal, pessoas com Transtorno Bipolar estão entre o grupo de risco para suicídio. Pesquisas indicam que "entre 30% e 50% dos brasileiros portadores de transtorno bipolar tentam suicídio, sendo que 20% conseguem o objetivo". 

Os problemas que surgem no livro são "solucionados" de formas tão superficiais que a suspensão de descrença precisa ser muito grande. Desde vencer a dependência química porque "meu pai me pediu para parar" até parar de tomar medicamentos psiquiátricos sem supervisão médica e ficar bem. Tomar medicamentos psiquiátricos pode ser um desafio muito grande, os efeitos colaterais são muitos e alguns são realmente insustentáveis. Porém, quando um medicamento não está te fazendo bem, você conversa sobre isso com seu médico, coisa que Regan, obviamente, não faz.

É um livro com uma linguagem muito poética, diálogos interessantes e cheio de curiosidades. A escrita da autora é bastante notável e ela alterna diferentes estilos narrativos ao longo do livro. Há capítulos com narrador e capítulos sem, há capítulos que parecem um fluxo de consciência e há capítulos que são praticamente só diálogos. Foi interessante. Deu um ar caótico ao livro que combina com a história. Creio que funcionaria melhor para a minha versão 10 anos mais jovem. O fato de eu ter 30 anos e ser psicóloga, infelizmente, me impediu de apreciar totalmente essa leitura. Mas isso não significa que tenha sido uma completa perda de tempo. É uma leitura agradável, o afeto que Aldo e Regan sentem um pelo outro é realmente palpável. Senti falta de saber mais sobre o Aldo e sua família. As conversas entre Aldo e o pai são incríveis. Aldo também tem uma personalidade intrigante e também enfrenta seus próprios problemas, mas suas questões acabaram sendo soterradas pelas questões da Regan. A questão é: basta ter um pouquinho de senso crítico pra entender que a história possui pontos muito problemáticos que se agravam ainda mais quando pensamos que o público alvo desse livro são os jovens. 

É fácil se identificar com eles porque eles estão quebrados e quem não está? Ela é caótica, ele não tem habilidades sociais. Ela é impulsiva e se isola quando não está bem. Ele é esquisito e meio depressivo. É um clichê sentimental e, de um jeito ou de outro, pessoas vão se identificar. Na página 247, Aldo diz:

Às vezes sinto que só estou esperando por algo que nunca vai acontecer. Como se eu só estivesse existindo dia após dia, mas que nada jamais vai ter importância. Eu acordo de manhã porque preciso, porque tenho que fazer alguma coisa, senão sou só um zero à esquerda, ou porque, se eu não atender ao telefone, meu pai vai ficar sozinho. Mas é um esforço constante, é trabalhoso. Todo dia eu preciso dizer a mim mesmo para sair da cama. Levante-se, faça isso, se mexa assim, converse com as pessoas, seja normal, tente socializar, seja legal, tenha paciência. Por dentro só sinto, sei lá, um vazio. Como se eu não passasse de um algoritmo que alguém determinou.

É tão genérico que eu chuto que pelo menos 80% do planeta vai se identificar com essa fala em algum momento da vida. O que eu estou tentando dizer é que: sim, é fácil gostar desse livro porque são personagens fragilizados e emocionalmente vulneráveis. Só que, olhando mais de perto, é possível perceber uma série de problemas. E tudo bem se você não quiser "olhar mais de perto". O romance é arrebatador, o drama é tocante e os diálogos são inteligentes. O problema é que quando Regan diz: "você me deixa ser eu mesma, e eu gosto de você quando você é você mesmo. Por que isso é ruim?" eu tenho vontade de tacar o livro na parede e gritar: "PORQUE VOCÊ ESTÁ DOENTE"

O livro é dividido em 6 partes e eu preciso dizer que a partir da parte 5 o livro fica muito bom. O relacionamento dos dois acelera na mesma medida que os pensamentos e comportamentos de Regan vão ficando alarmantes (quem diria que isso poderia acontecer após ela parar os medicamentos sem supervisão médica, não é mesmo?!). É quando Aldo finalmente começa a perceber que existe um problema com Regan. A autora soube demonstrar muito bem como funciona um episódio de mania e, certamente, se utilizou de suas próprias experiências para isso. O final do livro pode ser decepcionante pra quem prefere finais mais fechados e conclusivos. No geral, achei o livro irresponsável. Mesmo que a autora tente explicar algumas coisas nos seus agradecimentos, ainda acho que a mensagem final é bem preocupante.

Enfim, como vocês podem perceber, eu tive uma relação complexa com essa leitura. Eu gostei do processo de leitura e li rápido porque queria saber o que iria acontecer. Mas passei boa parte do tempo preocupada e revoltada com o livro. Uma leitura rápida não necessariamente é uma boa leitura. Assim como demorar muito pra ler um livro não necessariamente significa que o livro é ruim. No fim, recomendo a leitura para quem ficou curioso. Não é um livro que eu indicaria para meus pacientes ou para quem está num momento difícil, emocionalmente falando, mas também não acho que seja um livro de todo ruim.

Título Original: Alone With You in the Ether ✦ Autora: Olivie Blake
Páginas: 336 ✦ Tradução: Carlos César da Silva ✦ Editora: Intrínseca
Livro recebido em parceria com a editora
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22 de abril de 2024

O fenômeno Ali Hazelwood: uma (não tão) breve opinião sobre Noiva, Xeque-mate e Amor, teoricamente

Foto: @pimenta_preta
Juro para vocês que eu até pensei em fazer uma resenha separada para cada uma dessas leituras, mas vamos ser sinceros: eu ia enrolar até o fim do ano e não ia sair nada, e depois eu ia simplesmente desistir de falar sobre elas. Então, como li esses livros com um intervalo de tempo relativamente curto e são da mesma autora, achei que seria legal deixar minha opinião — totalmente parcial, já fiquem sabendo — aqui para vocês. 

Quem não vive em uma bolha, ou quem vive na bolha certa, provavelmente conhece a Ali Hazelwood. Ela ficou muito conhecida após o sucesso de A Hipótese do Amor, uma comédia romântica sobre uma cientista que acaba se envolvendo com um professor do setor onde realiza sua pesquisa de doutorado. Depois desse, podemos dizer que a carreira da autora deslanchou. Para ser bem sincera, além das situações cômicas entre os personagens, o que eu mais amo nos livros da Ali é justamente o fato dela trazer protagonistas que atuam nas áreas de Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática (STEM) e, consequentemente, o ambiente científico/acadêmico para as tramas. Foi assim com A Razão do Amor e com as novelas que compõe a coletânea Odeio te Amar

Eu não costumo ser muito exigente com comédias românticas e é por isso que gostei de todas essas histórias, mas não vou negar que elas são mesmo muito parecidas. Nem acho que é por causa das protagonistas atuarem nas áreas de STEM, e por fazerem questão de mostrar o ambiente tóxico e machista do meio científico... A grande questão são os romances, geralmente com homens altos, musculosos, gostosos, ranzinzas e grandes feito guarda-roupas. Inclusive, acho que essa é maior crítica que a gente vê por aí sobre a autora e seus livros — e o fato de todos serem brancos, é claro —, mas querem saber a verdade? Eu adoro essa farofada. Não tem porque eu mentir para vocês. 

E foi por causa disso que eu resolvi ler Amor, Teoricamente, que é meu livro preferido da Ali Hazelwood até agora. Em primeiro lugar, sinto que o texto dela evoluiu muito. Ela consegue manter seu estilo de escrita, mas sai um pouco dessa "fórmula" de fanfic. Não tô dizendo que isso é negativo gente, seria até hipócrita da minha parte porque eu amo fanfic, mas dá para perceber claramente que ela saiu desse lugar-comum, o que significa que, de certa forma, ela ouviu seus leitores. 

Nessa história, Elsie Hannaway, uma física teórica, se envolve com Jack Smith, um físico experimental. Eles são basicamente rivais acadêmicos, mas fora desse contexto se dão muito bem. As diferenças já começam aí, porque os protagonistas não se "odeiam", dialogam bastante, mas existem outras questões que "impedem" que eles se envolvam romanticamente. Um deles, por exemplo, é o processo seletivo para professora titular que Elsie participa e que está diretamente ligado a Jack. Alías, essa parte foi muito bem desenvolvida no livro, e eu sei disso porque eu tô no meio acadêmico, e eu amei pra caramba! Ouso dizer que foi o que mais me cativou no enredo, e é uma das coisas que torna esse o meu livro preferido da autora. Também adorei que a Ali desmistificou duas coisas que todo mundo acredita: que professor universitário ganha bem e que pesquisa é valorizada em algum lugar

Depois, engatei a leitura de Xeque-mate, e foi muito bom porque foi um livro que me prendeu num momento que nada mais estava me interessando. Esse é o primeiro livro da Ali Hazelwood que não é voltado para o público adulto. Confesso que fiquei um pouco receosa porque sou do tipo de pessoa que acha que o sexo é uma das formas mais fáceis de conectar personagens, mas gostei muito de como a autora trabalhou essa questão da sexualidade aqui. Mallory é uma jovem de 18 anos, bissexual, com uma vida sexual muito ativa, mas tem dificuldade de se apegar às pessoas. Nolan, por sua vez, apesar de ser um pouco mais velho que Mallory, nunca havia experimentado de fato o desejo sexual. Essa dinâmica foi muito interessante de acompanhar. 

Mas voltando ao cerne da questão, nessa história não temos o famoso ambiente acadêmico, mas os personagens não deixam de ser super inteligentes. Mallory é uma ex jogadora de xadrez, que basicamente desistiu do esporte para sustentar a família. Seu pai faleceu há alguns anos — e mesmo se estivesse vivo, não posso dizer que a relação deles era muito boa —, sua mãe tem uma doença crônica nas juntas que a impede de trabalhar e ela tem duas irmãs mais novas. Esse foi um ponto que me incomodou muito durante a narrativa, porque não me parece normal uma pessoa tão jovem abrir mão de todos os seus sonhos porque acha que tem responsabilidade sobre a família. E o pior de tudo é que a própria família dela parece se sentir muito confortável com a situação.

Abrindo um parênteses aqui... Amo o fato da Ali ter criticado o sistema de saúde estadunidense tanto em Xeque-mate quanto em Amor, Teoricamente. No primeiro, Mallory não teria que aceitar um emprego insalubre, desistir do xadrez e da faculdade, se não tivesse que comprar os remédios caríssimos da mãe, e sem eles ela não consegue se manter saudável o suficiente para fazer qualquer coisa que seja. No fim das contas, ela não tinha muita escolha a não ser deixar que, indiretamente, Mallory assumisse o seu papel em casa e eu até demorei um pouco para entender isso. No segundo, Elsie tem diabetes e mesmo com dois empregos não consegue ter grana o suficiete para bancar um tratamento, o que faz com que ela seja obrigada a "trabalhar" por fora como uma espécie de acompanhante de luxo — acompanhante mesmo, nada sexual, gente. No Brasil esse tipo de coisa não aconteceria, né, mores. 

Espacinho para agradecer imensamente minha amiga Marcella por ter salvado minha vida com essas fotos incríveis, já que eu li os livros no Kindle. Agora vão lá no Instagram dela dar uma moral pois pfta d+.

Tá, retornando para Xeque-mate... Mallory acaba aceitando participar de um torneio de xadrez beneficente e, totalmente "sem querer", derrota facilmente o atual campeão mundial, Nolan. Por mais que exista o romance — e notem que os romances da Ali quase sempre são pautados em rivalidades e não necessariamente em relações de inimizade, o que é bem diferente —, o foco maior é na relação da protagonista com a família e no seu crescimento, tanto pessoal, quanto no xadrez. Mesmo depois de muito tempo sem jogar, Mallory se mostra uma competidora à altura, o que incomoda muitos homens. Essa questão do machismo é muito bem trabalhada em todas as histórias da autora, aliás, por isso que eu amo tanto.

E sobre o romance... É interessante perceber como a Mallory tem uma visão super distorcida de relacionamentos amorosos por causa de uma situação envolvendo seu pai, que também era jogador de xadrez. Acaba que esse ponto em específico não influencia somente a forma da protagonista se conectar emocionalmente com as pessoas, mas também em como ela enxerga o xadrez. Por isso gosto de dizer que é uma história sobre uma pessoa que precisa, acima de tudo, resolver seus dilemas para conseguir seguir em frente e entrar em uma relação. 

Agora, voltando totalmente para o rolê das fanfics, temos Noiva, o mais novo lançamento da Ali Hazelwood, e com certeza o livro mais diferente da autora — o que parece bem irônico, mas vou explicar. Primeiramente, é um romance sobrenatural entre um lobisomem, ou licano, e uma vampira, e foi praticamente inevitável associar a um universo alternativo em que a Bella e o Jacob de Crepúsculo ficaram juntos. Ao mesmo tempo, foge totalmente da dinâmica científica/acadêmica/totalmente nerd que estamos acostumados, ainda que a protagonista seja da área da tecnologia. 

Misery Lark é filha do maioral dos vampiros, e acaba sendo "obrigada" a casar com Lowe Moreland, o alfa do bando de lobisomens. Bom, historicamente sabemos que vampiros e licanos são inimigos mortais, e esse casamento é uma tentativa de estabeler a paz entre os reinos. Misery tem outras razões, nada a ver com alianças políticas, para aceitar essa união forçada, então ainda temos uma cerejinha no bolo que é essa aura de mistério

Além disso, acho que a maior diferença para todos os outros livros, é que me parece a primeira vez que o personagem masculino tem dilemas quanto ao relacionamento. Sei que muito disso vem do fato deles serem de clãs inimigos, mas o Lowe gosta da Misery e se sente atraído por ela desde o primeiro instante, mas existe alguma coisa dentro dele que impede o desenvolvimento dessa relação. Ainda mais porque a Misery meio que não esconde o tesão né, coitada. A pobre lá doida pro vuco-vuco e o querido "não podemos pois somos incompatíveis sexualmente bibibi bobobó". Enfim, senti que nesse livro a protagonista que tava pronta, e ela que teve que esperar pelo mocinho, sabem?

Também acho que Noiva é o livro mais sexy da Ali, até porque ela explora outras formas de sexo, outras formas de contato e outras formas de conexão — e olha que eu nem tô falando especificamente do babado do nó, que se vocês quiserem saber o que é, sugiro dar um Google ou imaginar dois cachorros cruzando, rs. Tem uma cena específica que rola dentro de um avião, depois deles firmarem uma aliança, que eu faltei morrer lendo e não podia dar nem um piozinho porque era madrugada e não podia acordar o meu querido. Inclusive, esse foi o primeiro livro que me fez virar uma noite lendo, depois de muito, muito tempo... Um hábito nada saudável para uma pessoa grávida, mas não consegui me controlar.

Então vocês me questionam... Nesse momento, eu sei que meu livro preferido da Ali é Amor, Teoricamente, mas eu não consigo ranquear os outrosA Hipótese do Amor tem meu primeiro guarda-roupa preferido, o Adam... Bee e Levi, de A Razão do Amor, arrancam suspiros com a maior tensão sexual da vida... Xeque-mate tem uma das tramas mais legais envolvendo o desenvolvimento pessoal da protagonista... Noiva me trouxe aquele sentimento gostoso de que finalmente os romances paranormais estão voltando com tudo e com muita qualidade... E até Odeio te Amar, que tem uma das minhas novelinhas favoritas, Sob o Mesmo Teto. Simplesmente não dá para escolher, gente. 

Eu acho que Ali Hazelwood merece esse hype todo. São histórias muito divertidas, sensuais, bem farofentas, mas sem deixarem de falar sobre algum assunto importante, do jeitinho que eu gosto. Agora, no dia que ela resolver me escrever um mocinho à lá Amaury Lorenzo, aí sim vocês vão me ver bem surtadinha. E é isso, assumo que sou completamente obcecada por essa autora e não vejo a hora de ler qualquer outra coisa que ela lançar. Apenas LEIAM, um beijo e um queijo. 

19 de abril de 2024

Uma Rua no Brooklyn, de Jenny Jackson: um romance com teor de crônica para os amantes de Nova York

Confesso, não fui uma daquelas jovens obcecadas pela Disney ou cultura estadunidense. Consumia as músicas, séries e filmes, mas sem nenhum deslumbramento. Tudo mudou há 2 anos quando comecei a assistir Sex And The City: se você não é fascinado por Nova York, Sarah Jessica Parker vai te fazer mudar de ideia. Com as noites de gala, vida boêmia e círculos sociais bem definidos onde todos se conhecem, a Big Apple é uma cidade cheia de encantos como já nos avisava Alicia Keys em Empire State of Mind - "In New York / Concrete jungle where dreams are made of / There's nothin' you can't do".

Quando vi o lançamento da Companhia das Letras com ambientação no submundo dos milionários da Brooklyn Heights, comecei a leitura e terminei em 2 dias. É um romance leve, mas com reflexões sobre família, dinheiro, elite e aparências. Comecei o livro me perguntando o quão maravilhoso deveria ser uma vida com tantos luxos e regalias, mas terminei com a clássica pergunta perene: "dinheiro realmente traz felicidade?". 

Havia um sem-fim de coisas que poderia dar errado, e dinheiro era a melhor maneira de se proteger de uma tragédia.

Uma Rua no Brooklyn é escrito sobre o ponto de vista de 3 mulheres. As duas irmãs e clássicas nova-iorquinas frequentadoras dos melhores clubes, são as irmãs Georgiana e Darley. A primeira, uma jovem que trabalha numa organização que visa levar saúde para países menos favorecidos, vivendo sua solteirice e avançando em uma paixonite do escritório. Mimada como a irmã, Darley abriu mão de sua herança milionária no acordo pré-nupcial para casar com Malcolm, descendente de coreanos e um mago do mercado financeiro da aviação. 

A última mulher é a que tira a narrativa do seu eixo Real Housewives. Sasha foi criada numa família de classe média e teve a sorte de conhecer seu grande amor no começo da vida adulta após anos de idas e vindas com o namorado do ensino médio. Cord é o marido de Sasha, irmão de Georgiana e Darley, que resistem em aceitar o casamento e chamam a cunhada de "a interesseira". Após o casamento, o casal mudou-se para o grande sobrado de 4 andares da família na Pineapple Street, mas a recém-chegada à família não pode sequer mudar as cortinas ou jogar recordações de família no lixo. É um lembrete silencioso de que a família Stockton é um clã e ela não é de todo bem-vinda. 

Estavam sempre desesperados em manter as aparências e se certificar de que não houvesse nenhuma rachadura em sua fachada.

Com essa dinâmica instalada, o livro se desenrola em meio a fofocas, dramas e conflitos dos 1% mais ricos do mundo. Os encontros em clubes de tênis da alta sociedade e as festas à fantasia, revelam um pouco sobre como o dinheiro pode ser um grande criador de problemas, na mesma medida que pode solucioná-los. 

Aos desavisados: não é um romance água com açúcar. Em alguns momentos, vai te deixar com a garganta seca sem saber o que acontecerá e se os personagens ficarão bem. É totalmente humano, são problemas tão cotidianos que provam que os super-ricos também são humanos sujeitos às suas emoções e às consequências destas. 

Fiquei muito feliz em poder ler sobre temas que gosto como dilemas familiares e vida em Nova York com uma narrativa tão adulta, sagaz e questionadora. Um romance leve, mas com o peso de uma vida cotidiana o que traz um teor de crônica do The New York Times de domingo. Aos amantes de NY, uma leitura inesquecível. Aos que ainda não se deslumbram com a energia cosmopolita da cidade, uma oportunidade de deleitar-se. 

Título Original: Pineapple Street ✦ Autora: Jenny Jackson
Páginas: 256 ✦ Tradução: Lígia Azevedo ✦ Editora: Companhia das Letras
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15 de abril de 2024

A Biblioteca da Meia-Noite, de Matt Haig, mostra que independentemente das nossas decisões, viver é sempre um processo muito difícil

Acho que o primeiro contato que tive com uma história com foco em realidades alternativas foi Efeito Borboleta, filme de 2004 protagonizado por Ashton Kutcher. Nele, Evan, o personagem, consegue viajar no tempo e alterar o passado, trazendo consequências não muito boas para o presente. "Efeito borboleta" é uma expressão muito utilizada na Teoria do Caos para explicar uma das características mais marcantes dos sistemas caóticos, isto é, a sensibilidade das condições iniciais. No caso desse filme, ou do livro A Biblioteca da Meia-Noite, até mesmo as menores decisões, aparentemente insignificantes, têm capacidade de gerar mudanças gigantescas ao longo do tempo

Nora Seed é uma mulher que coleciona arrependimentos. Vive uma vida totalmente sem emoção, o que faz com que ela se questione constantemente como estaria e aonde teria chegado se tivesse tomado algumas decisões diferentes no passado. Após ser demitida, seu gato ser atropelado e ser dispensada pelo vizinho idoso da única tarefa que fazia com seus dias tivessem um pouquinho de sentido, Nora sente que sua existência na Terra não é mais necessária, que ninguém mais precisa dela. E é assim que a personagem vai parar na Biblioteca da Meia-Noite. 

A Biblioteca da Meia-Noite é um lugar onde o tempo não passa. Nora não está morta, mas também não está viva. Mas ao chegar nesse lugar, ela recebe a oportunidade única de viver todas as vidas que poderia ter vivido caso tivesse tomado outras decisões. Cada livro da biblioteca é uma vida diferente: o que teria acontecido se Nora não tivesse terminado um relacionamento de anos? Ou fosse viajar com a melhor amiga, ou tivesse seguido carreira musical, ou tivesse se tornado uma nadadora olímpica, ou, ao invés de Filosofia, tivesse cursado Glaciologia na faculdade? A partir dos seus arrependimentos, Nora tem a oportunidade de consertar seu passado e, quem sabe, achar uma vida que realmente faça sentido a ponto de desejar ficar nela. 

Após finalizar essa leitura, entendo o porquê de ela fazer tanto sucesso. Afinal, todos nós temos vontade de mudar uma decisão ruim que tomamos no passado... Mas, assim como Nora, acho que nunca paramos para refletir sobre as reais consequências dessas alterações. Alguns exemplos práticos: eu estaria casada com meu marido mesmo se eu tivesse aceitado aquela primeira solicitação dele no Facebook, que eu recusei por não saber quem ele era direito? Se eu tivesse contrariado a vontade da minha família e tivesse feito Letras na faculdade ao invés de Geologia, eu já estaria terminando o meu doutorado agora, ou sequer estaria fazendo doutorado? A questão é justamente essa: nós nunca saberemos! 

Percebe-se por esse texto que A Biblioteca da Meia-Noite é um livro extremamente melancólico, cheio de gatilhos, do início ao fim. As primeiras tentativas de Nora de encontrar a vida perfeita, por exemplo, são extremamente dolorosas, até um pouco difíceis de digerir. Mas, assim como Nora, queremos saber os rumos que ela poderia ter tomado na vida. E é aqui que admito uma das maiores vitórias de Matt Haig com esse livro: é fácil demais se perder em uma narrativa com multiversos, uma vez que essas muitas vidas podem não agregar muita coisa na história como um todo, e não é isso o que acontece aqui. Cada universo alternativo de Nora causam algum impacto na personagem, na sua versão "definitiva". 

Os capítulos curtos ajudam muito na fluidez da narrativa, mas não deixa de ser um livro muito difícil. À medida que avançamos na leitura, temos a percepção de que a vida perfeita não existe. Coisas boas e ruins vão existir na mesma proporção, não importa a decisão que a gente tome. Acredito que essa é a grande reflexão desse livro, e é por isso que vejo tanta gente dizendo que ele flerta um pouco com o gênero autoajuda: viver não é fácil e, diferentemente de Nora Seed, não temos o privilégio de escolher entre milhares de possibilidades, não temos como voltar atrás. Nos resta, no fim, aproveitarmos as partes boas e aprendermos a lidar com as ruins.

Título Original: The Midnight Library ✦ Autor: Matt Haig 
Tradução: Adriana Fidalgo ✦ Páginas: 320 ✦ Editora: TAG Experiências Literárias & Bertrand Brasil

8 de abril de 2024

De Volta aos Anos 90, de Maurene Goo: um retrotáxi e a relação entre gerações de uma família coreana


Sam é uma menina de 2025 que está no último ano do ensino médio, concorrendo à rainha do baile na sua escola. Ao contrário do que possa parecer, Sam não é uma garota fútil, ao estilo meninas malvadas. Ela se importa com o meio ambiente, é ótima escritora e gosta muito das suas raízes coreanas. Ela é totalmente oposta a sua mãe, Priscilla.

Por causa das diferenças abissais entre as duas, elas brigam constantemente sobre tudo. Um dia, em meio a uma briga muito feia, Sam se vê obrigada a pedir um carro por aplicativo para "fugir" de Priscilla. Ela nota algumas coisas estranhas, mas só quer acabar aquela corrida, chegar na escola e tomar conta da sua própria vida e seus problemas. Só que ao descer do carro, Sam descobre que ela foi parar em 1995.

Não tendo a menor ideia dos motivos que fizeram ela ir parar ali, precisando encontrar um meio de voltar pra casa, ela entende que precisa ajudar a versão adolescente (e insuportável) da mãe a ganhar o concurso de rainha do baile e, consequentemente, melhorar seu relacionamento familiar.

Em meio a essa confusão, Sam começa a entender a si mesma, e também começa a ver como a relação entre ela e sua mãe se tornou tão pesada com o passar dos anos. Ah, e temos crushes de outras épocas também, um personagem muito fofo que vai roubar seu coração, assim como roubou o de Sam. Além disso, o livro tem mil referências aos anos 90, óbvio, mas também tem coisas atuais como k-pop e k-dramas, Taylor Swift e muito mais.

No meio de todo esse universo pop, De Volta aos Anos 90 mergulha na dinâmica entre três gerações de uma família coreana, navegando por diferentes épocas através de uma jornada no tempo. Ao fazê-lo, ele habilmente aborda questões sensíveis como as experiências de famílias imigrantes, o racismo arraigado e a xenofobia estrutural dos anos 90, cujas repercussões ainda ecoam nos dias atuais. Apesar da profundidade desses temas, a narrativa é leve e muito divertida.

Uma coisa sobre essa questão das dinâmicas familiares que eu gostei bastante foi perceber como a gente tende, mesmo que inconscientemente, a reproduzir comportamentos dos nossos pais. Por exemplo, a relação da Sam com a avó é maravilhosa, mas a relação da Priscilla com a mãe é tão ruim quanto a de Sam com Priscilla. Inclusive, é essa ruptura da relação entre a mãe e a avó que "justifica", de certa forma, a rigidez da relação entre Sam e Priscilla. Será que a interferência de Sam no ano de 1995 vai ajudar? Só vocês lendo para saber. 

Como é boa a surpresa de pegar um livro sem pretensão nenhuma e simplesmente acabar com um favorito da vida em suas mãos. Amei de mais De volta aos anos 90, me diverti horrores e chorei também. Um livro ótimo e uma recomendação um pouco diferente do que eu costumo trazer por aqui!  

Título Original: Throwback ✦ Autora: Maurene Goo
Páginas: 416 ✦ Tradução: Lígia Azevedo ✦ Editora: Seguinte
Livro recebido em parceria com a editora

4 de abril de 2024

Babel, de R. F. Kuang: magia, tradução e colonialismo


Você provavelmente já ouviu aquela frase: "Saudade não tem tradução", né?! De fato, existem palavras, em diferentes línguas, que não podem ser perfeitamente traduzidas em outras línguas. Sabe aquele momento da vida cotidiana que te dá uma intensa sensação de conforto, aconchego e contentamento? Como quando, por exemplo, você senta na sua poltrona, lendo um livro muito bom e se sentindo extremamente satisfeito com aquele momento? Os dinamarqueses têm uma palavra para isso: hygge. Já os suecos possuem uma palavra que significa acordar cedo e sair para ouvir o primeiro canto dos pássaros: gökotta. Os alemães chamam de waldeinsamkeit a sensação de estar sozinho no meio da floresta e se sentir parte dela, parte da natureza, numa forte conexão espiritual. Essas palavras, intraduzíveis por assim dizer, são o foco em Babel. Mas eu estou me adiantando. Vamos do início.

Também da autora:

Em Babel, R. F. Kuang, mesma autora de A Guerra da Papoula, nos apresenta a uma ficção especulativa, misturando eventos históricos reais e elementos fantásticos. A história se passa na década de 1830 e tem início na cidade de Cantão, na China. Um menino, que será chamado de Robin Swift, perde toda a sua família para a Cólera. À beira da morte, o menino é resgatado por um homem misterioso que será seu tutor daqui pra frente, levando-o para viver com ele em Londres, dando-lhe moradia, comida e educação. Em troca, Robin deverá se dedicar ao estudo das línguas e, futuramente, ingressar na Universidade de Oxford, onde está localizado o Real Instituto de Tradução, um prédio de oito andares também chamado de Babel, em referência à Babel bíblica. 

O sistema de magia criado por Kuang consegue ser muito simples e muito complexo ao mesmo tempo. A magia aqui é canalizada em pequenas barras de prata. Mas o real elemento mágico são as palavras, já que a prata serve apenas como um veículo para a magia. Em cada lado dessa barra de prata se escreve uma palavra, em duas línguas diferentes, e a prata manifesta exatamente aquilo que se perde na tradução, ou seja, aquela lacuna entre o significado real da palavra original e o significado aproximado da palavra traduzida. Confuso? Um pouco, mas a autora dá diversos exemplos ao longo do livro que vão tornando mais fácil compreender.

O fato é que, para ser capaz de utilizar essa magia, a pessoa precisa ser falante das línguas impressas na prata. Não basta ler a palavra, nem mesmo conhecer a língua superficialmente. É necessário ser fluente e ter total domínio da língua. Por isso, os estudantes de Babel costumam ser estrangeiros que passam boa parte do seu tempo estudando diferentes línguas para serem capazes de produzir barras de prata mágicas. É para esse trabalho que Robin é treinado desde criança. E para onde vão essas barras mágicas? Bom, é aqui que começa o problema. As barras são um produto caro e sua produção e comercialização se concentra na Grã-Bretanha. Isso, para alguns, é uma forma de "exploração deliberada de cultura e recursos estrangeiros" (palavras de um certo personagem que vai surgir no livro pra deixar nosso protagonista confuso).

Robin é apaixonado por esse mundo, por Babel, pelos amigos que conheceu na Universidade e pela magia da tradução. Tão apaixonado que, inicialmente, ele nem se importa de estar se afastando das suas origens. Afinal, a vida que ele tem agora é tão melhor do que a vida na China. Mas será que tudo isso está certo? O conflito moral do personagem é um dos pontos que Kuang vai explorar. Mas são tantos outros pontos que se destacam nessa história que é até difícil pontuar. Acho que já ficou claro que Babel fala sobre colonialismo, sobre o valor da cultura e da língua, sobre usar os recursos de um povo para construir riqueza para outro povo. E Kuang não tem medo de ser ácida em sua escrita.

Robin é o tipo de protagonista que o leitor não vai amar justamente porque ele é muito real. Senti raiva dele em muitos momentos porque ele é covarde, prioriza as escolhas mais fáceis e é egoísta. Ele não é o típico herói que coloca o seu próprio bem-estar em segundo lugar para priorizar o bem comum. Ele é confuso e adora ficar em cima do muro... Pelo menos até o muro desmoronar. Robin, inevitavelmente, vai perceber que os dois lados não podem prosperar juntos. Para Babel e o império prosperarem, seu povo, a China, continuará sendo explorado. Robin ama traduzir e ama a Universidade, mas será que conseguirá viver em paz vendo os chineses definhando? Quando a guerra se tornar inadiável, de qual lado Robin lutará?

Babel é uma leitura densa, então não vá esperando um livro rápido e fácil de ler. Eu levei muito mais tempo para ler Babel do que costumo levar com livros do mesmo tamanho. Em muitos momentos, me senti lendo um livro acadêmico, técnico, são tantos termos, teorias e explicações para conceitos complexos que eu lia um capítulo por vez e precisava parar para pensar. Alguns trechos são revoltantes e difíceis de ler e as falas xenofóbicas e machistas são comuns. Por exemplo, quando o professor Lovell, tutor de Robin, lhe diz:

Preguiça e dissimulação são traços comuns nos indivíduos do seu povo. É por isso que a China continua sendo um país indolente e atrasado enquanto seus vizinhos avançam em direção ao progresso. Por natureza, vocês são tolos, têm a mente fraca e são pouco inclinados ao trabalho árduo. Você tem que lutar contra essas características, Robin. Tem que aprender a superar a impureza de seu sangue. Eu apostei alto na sua capacidade de fazer isso. Prove-me que valeu a pena ou compre você mesmo sua passagem de volta para Cantão.

E isso é na página 56, ta?! Imagina o resto do livro.

Essa história me fez pensar sobre tanta coisa. Nós, leitores, precisamos tanto das traduções para termos acesso a maioria dos livros que lemos e, às vezes, nem paramos para pensar no quão desafiador deve ser traduzir um texto, escolher as melhores equivalências e tentar manter o significado do texto original, sem distorcer a mensagem que o autor desejava passar. Basta uma palavra ser traduzida inadequadamente e todo um parágrafo corre o risco de ser distorcido. E será que isso é realmente possível? Traduzir sem distorcer? De acordo com um dos professores de Babel, não. Segundo ele: "os tradutores não transmitem uma mensagem, mas reescrevem o original. [...] a distorção é inevitável. A questão é como distorcer com ponderação."

Outro ponto muito interessante sobre Babel é que existem notas de rodapé ao longo de todo o livro. Porém, não são notas de rodapé comuns. É como se a pessoa que escreveu as notas fosse uma personagem à parte, com personalidade e opiniões próprias. Eu imaginava a própria Kuang como essa narradora à parte, aparecendo como narradora e personagem em seu próprio livro. Kuang que, inclusive, deve ser uma mulher brilhante que eu adoraria ter como amiga. Atualmente, a escritora está cursando doutorado em Literatura e Línguas do Leste da Ásia. Ou seja, a gata sabe do que tá falando.

Particularmente, gostei bem mais de Babel do que gostei de A Guerra da Papoula, mas acho que ambas as histórias demonstram muito bem o quão potente é a escrita da Kuang. Principalmente no primeiro terço da história, Babel me lembrou A História Secreta da Donna Tartt, já que, especialmente no início, Babel até pode ser chamado de Dark Academia (inclusive com a presença de sociedades secretas). Mas acho que o que Kuang criou é tão único e com características tão próprias que fica difícil enquadrar num só gênero. É, de certa forma, uma ficção histórica, porque resgata acontecimentos reais. É fantasia, mas pode frustrar os amantes do gênero, já que os elementos fantásticos aqui servem apenas como pano de fundo para outras discussões. É Dark Academia, porque se passa no ambiente acadêmico e tem essa vibe obscura.

Babel foi uma leitura lenta que me custou muitos dias, mas que eu não pude deixar de apreciar. O final foi um pouco corrido e acho que tinham elementos dessa história que poderiam ter sido melhor explorados, mas, mesmo assim, eu considero uma leitura que vale a pena. Recomendo a leitura, principalmente para quem busca um livro complexo que não vai ser facilmente esquecido. São quase 600 páginas (e em letras pequenas) de uma história cheia de nuances e debates éticos, morais, sociais, culturais, psicológicos e identitários. E são tantas camadas que eu sinto que dava pra criar um clube do livro só pra falar sobre Babel. A história está cheia de jogos de palavras e trocadilhos que eu fiquei tentando decifrar, mas confesso que não obtive 100% de sucesso. Por exemplo, a maioria dos personagens tem nomes que podem ser traduzidos (parcial ou integralmente) e eu fiquei pensando se isso foi intencional (creio que sim) e tentando ligar o nome (a palavra) ao personagem.

Valeu a pena passar tantas horas lendo Babel. A edição da Intrínseca está linda. Eu gosto da capa, da escolha elegante de cores e o livro é super maleável, daqueles que você consegue abrir totalmente sem estragar a lombada. A tradução está impecável. Nem imagino o quão desafiador foi para a Marina Vargas traduzir um livro que fala sobre o ato de traduzir e que mistura tantas línguas numa só história. Só me resta parabenizá-la por trabalho cuidadoso que ela fez.

Título Original: Babel: Or the Necessity of Violence: An Arcane History of the Oxford Translators` Revolution 
Autora: R. F. Kuang ✦ Páginas: 592 ✦ Tradução: Marina Vargas ✦ Editora: Intrínseca
Livro recebido em parceria com a editora
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